Especialistas debatem método de combate à evasão escolar, criticado por pais, que inclui progressão escolar e avaliação de rendimento em países diversos.
O consultor Fábio Olmos, pai de duas filhas, tem uma visão positiva sobre a escola municipal da Vila Matilde, Zona Leste de São Paulo. Ele destaca a qualidade do ensino oferecido, que inclui uma progressão continuada bem estruturada, além de ressaltar o bom relacionamento entre professores, pais e alunos.
Além disso, a instituição de ensino segue as diretrizes da legislação educacional, que prevê a implementação de um sistema de progressão baseado no desenvolvimento do aluno ao longo dos ciclos de ensino. Esse modelo, conhecido como sistema de ciclos, tem como objetivo garantir que cada estudante alcance o máximo de seu potencial, respeitando seu ritmo de aprendizagem e promovendo uma educação mais inclusiva e eficaz.
Desafios da progressão continuada nos ciclos de ensino
Sua filha mais nova, no entanto, ainda não adquiriu as habilidades de leitura e escrita esperadas para sua idade, e Olmos gostaria que ela repetisse o segundo ano do ensino fundamental por causa disso. 👉🏾 Mas, como a rede pública da cidade usa a chamada progressão continuada — em que os alunos recebem aulas de reforço mas não repetem o ano — não existe essa possibilidade.
Ao fim do primeiro ciclo, que termina na 3ª série, ela está fazendo aulas de reforço para conseguir acompanhar o ciclo seguinte. Fábio não gosta desse sistema. ‘É minha única reclamação. Não adianta ela passar de ano e ter dificuldade de escrever. Ela pode não conseguir se recuperar‘, diz ele.
Fábio acha que as aulas de reforço da sua filha, que começa a estudar mais cedo duas vezes por semana para isso, não são suficientes. ‘Sei que ao repetir ele pode ficar frustrada, porque os amiguinhos foram para outra sala. Mas é um problema menor diante da possibilidade de ela avançar sem ter aprendido’, afirma.
Ele não está sozinho no descontentamento: muitos pais reclamam da progressão continuada, e há críticas até mesmo entre professores. A diferença é que, em vez de um aluno poder repetir todos os anos caso não atinja as notas esperadas, a repetição só é possível ao final de cada ciclo, que costuma ser de três anos.
📊 A progressão continuada foi adotada no Brasil a partir da criação da Lei de Diretrizes e Bases (LBD) para a educação, em 1996. A legislação criou a possibilidade de uso desse novo sistema de progressão escolar, mas não o tornou obrigatório.
Implementação e abrangência do sistema de progressão continuada
Cada Estado e município decide se adota e quais são as regras, e nem mesmo o Ministério da Educação (MEC) diz saber quantos Estados usam a progressão. São Paulo foi o primeiro Estado a implementar o modelo em toda a rede pública estadual, em 1998.
Aos menos outros nove Estados adotaram a progressão continuada ou um sistema equivalente desde então, segundo um levantamento da BBC News Brasil. Seis Estados informaram que não usam a progressão, e 11 não responderam à consulta da reportagem.
Anna Helena Altenfelder, do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação (Cenpec), organização sem fins lucrativos voltada para a promoção da qualidade do ensino público nacional, explica que a progressão continuada foi criada para combater a evasão escolar e atingir a meta de universalizar a educação brasileira, ou seja, garantir o acesso de todos a um ensino de qualidade e que continuem na escola.
A pesquisadora diz que a estratégia funcionou: a evasão caiu. Mas o método é muito questionado porque criou um novo problema. Um aluno pode chegar ao fim do ensino fundamental sem ter conhecimentos básicos — há casos em que o estudante passa para o ensino médio sem compreender um texto básico.
Resultados do sistema de avaliação de rendimento escolar do Estado de São Paulo, que foi pioneiro no uso da progressão, mostram que, em 2019, a última prova aplicada antes da pandemia, 69% dos alunos do 9º ano do ensino fundamental tinham conhecimentos abaixo do considerado adequado em português. Em matemática, 80% dos alunos do 9º ano tiveram desempenho abaixo do ideal.
Estudos e pesquisas sobre a progressão continuada e reprovação de ano
Uma análise da Unesco, braço das Nações Unidas para educação, mostra que, embora existam estudos que apontem alguns benefícios do uso de repetição a cada série, a maioria dos indícios é de que, em países em desenvolvimento, isso gera mais danos do que vantagens.
‘Na América Latina, estudantes que repetiram pelo menos uma vez obtém resultados mais baixos em todos os exames, sobretudo em matemática e leitura’, explica Rebeca Otero, coordenadora de educação da Unesco no Brasil.
‘Ou seja, o estudante repete para que ele melhore seu desempenho acadêmico, mas isso muitas vezes não acontece.’ A análise da Unesco aponta ainda que a repetição de ano está associada a um maior risco de abandono da escola, a um maior índice de atraso de dois anos ou mais dos alunos em relação à série que deveria estar de acordo com sua idade, a chamada defasagem idade-série, e a impactos negativos na autoestima e motivação dos repetentes.
Os dados mostram também que os resultados escolares gerais onde a repetência é aplicada são muito parecidos com os de onde a progressão continuada foi adotada. Por exemplo, no Paraná, onde não há progressão, o sistema de avaliação de rendimento escolar de 2019 mostrou que 68% dos alunos do 9º ano do ensino fundamental estavam abaixo do esperado em português, muito próximo dos 69% de São Paulo.
Otero explica que a Unesco não faz uma recomendação específica sobre o assunto, porque qualquer orientação requer aprovação de todos os países membros e não há consenso. Ela defende que a repetição de série ‘deve ser o último recurso para remediar a situação de atraso dos estudantes na aprendizagem’.
Impacto da progressão continuada na evasão escolar e qualidade da aprendizagem
A redução da reprovação e da evasão escolar foi uma das razões que levaram à adoção da progressão continuada no Brasil. Mas, como aponta Costin, o país ainda reprova muito, tanto onde existe essa possibilidade ao final de um ciclo quanto onde não se aplica a progressão continuada.
O Brasil é, na verdade, um dos que mais reprovam entre os 38 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as maiores economias do mundo.
‘A reprovação é maior no sexto ano do ensino fundamental e no início do ensino médio, e está diretamente ligada à desmotivação e ao abandono escolar’, diz Costin.
Um estudo do economista especializado em educação Reynaldo Fernandes, da Universidade de São Paulo (USP), mostra que o problema da evasão afeta principalmente jovens de baixa renda, negros, da periferia ou de áreas rurais. Isso mostra que existe fatores socioeconômicos têm grande influência sobre os índices de reprovação e abandono escolar, diz Gontijo, do Todos pela Educação.
‘Tem a ver com as condições financeiras da família, com o índice de escolaridade da mãe, com a vulnerabilidade de moradia, etc’, diz ele.
‘Por isso, a reprovação é uma grande preocupação na rede pública, que atende os alunos em maior situação de vulnerabilidade.’
Desafios e potenciais soluções para melhorar a progressão contínua e a qualidade do ensino
A socióloga Maria Valéria Barbosa, que pesquisa sobre educação, diz que a progressão continuada foi pensada para que o sistema de ensino seja mais inclusivo ao dar um tempo maior para o aluno aprender.
Mas ela diz que isso não deve ser sinônimo de uma garantia de aprovação ou aprovação automática.
‘A progressão continuada não é ausência de avaliação, muito pelo contrário’, diz Barbosa, que é professora da Universidade Federal de São Paulo.
‘Para que funcione, é necessária uma avaliação constante e não só no final da série ou de um ciclo, para identificar as dificuldades dos alunos que precisam ser trabalhadas, para que ele avance para o próximo ciclo sem atrasos.’ Ou seja, em um cenário ideal, a cada ano, os alunos fazem provas, atividades e trabalhos para que a escola avalie o quanto foi retido das habilidades e conhecimentos necessários. A escola deve oferecer reforços para superar eventuais deficiências, desde aulas e atividades extras até trabalho em conjunto com outras instituições. No entanto, diz Barbosa, ‘muitas vezes, não é isso que acontece’.
‘Quando a progressão continuada foi implantada, foi para diminuir a evasão, mas também com o desejo de aumentar a eficiência na educação e reduzir gastos — porque um aluno que repete gera um custo financeiro’, diz Barbosa.
‘Nessa lógica de eficiência, não foram feitos os investimentos necessários para a progressão continuada dar certo.’ Claudia Costin, do Singularidades, aponta que há Estados que implementaram a progressão continuada sem montar estratégias eficientes para corrigir falhas na aprendizagem, que vão se acumulando conforme as crianças avançam nos ciclos.
Fonte: © G1 – Globo Mundo
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